domingo, 7 de junho de 2015

Ai Jasuuuuusssss, OH MEU DEUS, mesmo !!!

Bem.... Tenho a dizer que quem escolheu o nome para a prova sabia o que fazia !!
Aqui fica o relato ainda a quente da aventura.

Partida à meia-noite, uma noite agradável e quentinha (tinha chovido por volta das 18h).
O grupo era pequeno, cerca de 50 doidos, e vamos lá fazer-nos à montanha.



A parte inicial da prova era sempre a subir, mas com inclinações moderadas, e por bons trilhos (sem pedra solta, etc e tal). O pessoal ainda ia bastante junto, e era divertido ver as luzinhas vermelhas a piscar dos atletas que iam à frente, ou a nossa própria sombra, quando alguém atrás se aproximava.
Passamos a primeira aldeia, e uma senhora tinha posto uma mesa com uns bolinhos e chá de gengibre e mal para os participantes !! Que delícia !!
E isto nem era um abastecimento, a senhora é que soube da prova porque o seu filho ia participar na dos 70k, e quis-nos fazer o miminho !

Depois, continuamos por estradões, e chegamos a sabugueiro, aqui sim abastecimento, apenas liquido.

Mais umas horas, e chegamos ao Vale Rossim, aqui o abastecimento era no café junto ao lago, onde tinha uns barcos e afins.
O abastecimento era bastante completo, incluindo uma perna inteira de presunto para ir cortando à fatia, entre outras coisas.
Aqui ainda seguia com o grupo (de noite não me quis afastar muito), e demorei pouco tempo no posto.

Agora, a partir daqui é que a coisa se começou a complicar, deixamos os estradões, e andamos à volta do lago (ou lagoa, não sei bem a diferença). As marcações eram escassas e em locais a que não estou habituado. Parece que a ideia era seguir mesmo junto à água, mas havia "obstáculos"...
Após ter hesitado algumas vezes em qual seria o caminho, vi uma luz a aproximar-se, e esperei pela companhia...
Encontro um companheiro que era totalista na prova (todas as 5 edições) e até incluía um UTMB no currículo...
Estou bem acompanhado pensei eu !!
A dois foi mais fácil encontrar o caminho, e o homem conhecia os cantos à casa, se bem que nesta edição, a prova tinha umas "novidades"...

Chegamos à fenda da nave mestra, uns pirilampos a sinalizar e tal, e siga por lá abaixo (um bocado perigoso, mas siga, havia uma cordinha a meio).
Aqui fiquei sem companhia... Havia um voluntário a controlar as passagens depois da fenda, e a minha companhia ficou lá com um problema num pé.

Começava a descida para "Alforfa" e começaram as minhas dificuldades...
A descida era algo técnica, mas o que eu não conseguia era encontrar as marcações... Eu vi alguns reflectores a brilhar "ao fundo" e espaçadamente, mas, como chegar lá ??

Nisto fui ultrapassado por um japonês (daqueles do Japão mesmo), que ia colado a um português, que me disse : quando vires 3 pedrinhas juntas... é por aí !
Melhorou-me a vida, mas ainda assim, estamos na montanha, aquilo tem milhões de pedras...

Entretanto, o dia começou a aparecer, e deu para ver umas lindas paisagens do vale glaciar.



Depois, um pouco de estradão até ao abastecimento de Vale Glaciar, que era basicamente um carro junto ao rio, com uns garrafões de água.

Ia a andar bem, e a continuar o ritmo, chegava a "Unhais" bem dentro do tempo limite, e ainda com alguma frescura matinal.

Mais um pouco de estradão, e depois entramos na "selva amazónica".
Eu achava que ia para uma prova de "trail running" onde implica existir um trilho (trail) ...
Mas aqui uma zona com alguns quilómetros de mato fechado e alto, para além de ser a subir, da dificuldade maior de atravessar mato cerrado, ainda havia a parte labirinto, de procurar a fita, ou pintinha na pedra...

Nesta altura movia-me tão devagar tão devagar, que começava a ver a minha vida andar para trás...
O tempo para fazer cada quilómetro, era tanto, que já nem conseguia estimar a que horas chegaria.

Facto é que nesta fase ninguém passou por mim, portanto as dificuldades eram para todos, ou estava completamente perdido...
Envolto nestes pensamentos, ouço um suspiro <aaaaiiiii> algures à minha frente. Ok... o pessoal anda aqui, não nos conseguimos é ver.

Começo a ver uma estrada muito ao cimo... e a pensar : está a acabar a selva !!! Chego à estrada e ... atravessar, e voltar à selva :(

Após umas horas de mato, lá chegamos a uma zona aberta, onde consegui vir a origem do suspiro.
Eram dois atletas das 100 milhas.


Já iam com algumas dificuldades, e no plano lá os apanhei, e aproveitei depois numa parte de estradão a descer, para seguir caminho, enquanto eles recuperavam.


Nisto chegamos ao abastecimento de "Alforfa".
Mais uma vez apenas liquidos...
Um senhor achou que precisariamos de mais algo, e ofereceu-nos marmelada !!!

Daqui era a descer até "Unhais" !!! Mais uma vez animei, ainda estou dentro do tempo, afinal ainda há hipóteses, vamos lá aproveitar a descida !!

Esqueçam...
A primeira parte da descida era descer a pique, junto a um tubo gigante tipo gasoduto, mas acho que era de água... tudo cheio de pedra solta, pedra grande, pedras e pedrinhas. Se fosse do circo, ainda ponderei montar no tubo e ir de escorrega ...

No final da descida, não havia trilho... ou se havia... fugiu.
A ideia era atravessar campos, na direcção de uma fita que se via muito ao longe...
O que se via era vacas, vacas, vacas, bosta, bosta, bosta, e moscas moscas moscas ...
Vi uma fita nos cornos da vaca ... se calhar era um boi...

Ora, ao atravessar campos, com tufos de erva e bosta, riachos e afins, onde por baixo se escondem pedras, pode ser complicado. Eu não tive problemas, mas houve ali entorses ...

E as moscas, tantas moscas ... bzz bzz bzzz, e cada vez que um tufo que se atravessava era na realidade bosta, milhões delas levantavam-se BBBZZZZZZZ.. É caso para exclamar OH MEU DEUS !

Já nem me lembro se antes ou depois da bosta, atravessamos uma zona de aproveitamento de águas, em que corríamos em cima de um muro, com uma queda ainda grande para um ribeiro de um dos lados... e que mais à frente estreitava... Cardinali, podes vir a esta prova procurar talentos !

Bem... sobrevivi, mas cheguei a Unhais já depois das 11h... (o tempo de corte era as 12h).
Tinha um saco com muda de roupa e sapatilhas aqui.
Refrescar, tratar de mazelas, trocar de roupa, etc e tal, comer qualquer coisa, encher a mochila de água, olho para o percurso, e daqui ao próximo posto são 8.850 metros ... (mas com 733 metros D+).
Bem... vamos lá, posto a posto, que já passamos o corte.

Saí de Unhais às 11h59, cheguei a Alvoco eram ... ora tentem lá adivinhar, nem 9km's ... cheguei às : 16h00 !

Os 8.850 metros, deviam ser arredondados, aquilo teria no mínimo 10 ou 11, uma parte inicial plana, e depois 4km's a subir a 37% em cascalho !!! e 5 km's a descer por entre pedras.
Ora, subir a 37%, é tipo o elevador do paleozoico, com a pedra solta e tudo ... Foi o que me fez lembrar, mas ... x4 !
Cada vez que pensava que ia acabar, continuava, e continuava, e continuava, e ... quando estávamos no topo do monte, e aí exclamei, agora não tem por onde subir mais ! ERRADO ! Vira para o monte ao lado, e sobe mais um bocadinho...

Isto no pico do calor (39 graus) e sem grandes sombras ... As que havia aproveitei sentando-me lá a tentar refrescar.

Ora se, subir a 37% já não é a minha praia, com pedra solta, no pico do calor, e com uma noite inteira a correr antes... esqueçam. Era um passo para a frente, dois para trás.
Aqui foi uma tortura... acabou a água, comecei-me a sentir mal... e a minha prova ficou por aqui.

Nesta fase aproveitei um arbusto que fazia sombra e deitei-me por debaixo dele, a tentar recuperar.
Tentei tomar um gel, a ver se com a energia extra animava, para chegar até ao posto seguinte (ainda pensei em voltar para trás, mas pela distancia que dizia no guia, e pelo que já tinha feito, pareceu-me que o seguinte era mais próximo).
Bem, o gel entrou e saiu directo, e consegui ficar ainda mais mal disposto... Pareceu boa ideia na altura, mas se estiverem desidratados a morrer de calor, não tentem comer, não vai ser bonito.

No meio do festival de bulimia a seco, aparece-me o Mauro (que tinha ido para as 100 Milhas), com cara de quem já vinha algo cansado (só um bocadinho :P) ajuda-me a levantar, e oferece-me alguma água que tinha ( aí... 50ml... era o que havia...).
O suficiente para continuar com calma e tentar sair daquela alhada.
Pouco depois chegamos finalmente à descida !! Tinha ficado mesmo pertinho, aqui sente-se algum vento, e a ideia era corrermos na descida, para chegar a água mais depressa, mas tinha tantas pedras...

O Mauro ainda tentou e foi indo um pouco à frente, nem que fosse para pedir a alguém no abastecimento para me trazer água.
A meio tinha um pequeno charco, que usei para molhar o buff, e refrescar a cabeça, e com calma cheguei à entrada de Alvoco.
Nisto liga-me o Mauro : "eh pah, como estás ? Está aqui uma senhora numa casinha, que me ofereceu água, eu disse que vinhas aí, ela pôs a refrescar... Logo a seguir à estrada, que o abastecimento ainda é preciso subir."

Vejo uma casinha, uma senhora, peço água, e confirma-se a história !! "Já dei a um colega seu mesmo agora, ele avisou que vinha, e deixei a água a correr para refrescar".
Muito obrigado !!

Garrafa cheia, e vou a beber pelo caminho, ainda passo por uma bica, onde estava outro atleta a beber água, e aproveito para encher mais a garrafa (e refrescar).

Cheguei finalmente ao posto de abastecimento, que ficava num café de Alvoco. Gente muito simpática, e que nos brindaram com tudo e mais alguma coisa, mas neste momento não conseguia pensar em comida... e já nem em bebida, que até a água começava a cair mal.

Deitei-me um pouco no chão, com as pernas levantadas, e acho que adormeci uns minutos.

Quando acordei sentia-me melhor, lá me levantei lentamente, e fui-me dirigindo à mesa.
Uma gelatina, coca-cola... Ok, está a entrar !!

Amendoins salgados... batatas fritas, ok ...
Queijo da Serra com broa... ok
Bolo de chocolate ... ok
Caldo Verde, ok, já estou a ficar melhor.

Acabei a comer pasteis de bacalhau (acabados de fazer) e a beber super-bock, e a pensar : hoje já não janto !

Levantei-me, fui ao posto de controle (que era noutro sítio, e obrigava a subir escadas e rampas e coisas) dar sinal, e avisar que não ia continuar.
No ponto onde estava, era o início da subida para a torre, nem valia a pena tentar.
Pedi para me virem buscar, e voltei ao café para esperar pelo transporte até Seia.
A mesa estava posta ... e fui comendo !

À conversa com outros dois atletas (que estavam também à espera do transporte), e dos que iam passando pelo abastecimento, passou o tempo até às 21h, a hora a que finalmente nos foram buscar.

Terminou a aventura pela serra da estrela, com quase 70 km's e 2700 metros de subida percorridos.

Resumo :
Foi um novo recorde de distancia, elevação e duração.
Diverti-me muito durante a noite, vi paisagens e sítios bonitos (os caminhos entre esses sítios é que se fosse eu a escolher eram diferentes ...) e passei umas belas horas de companheirismo na montanha.
(E outras belas horas no café de Alvoco, recomendo !!! Passem por lá !)
Os voluntários e locais eram todos de uma simpatia imensa !

De referir que muita da comida (se não toda) nos postos, tinha sido preparada e oferecida pelos próprios voluntários !
O café de Alvoco estava a oferecer do próprio "bolso" toda a comida que preparou na mesa de abastecimento, como algum "extra" que os participantes quisessem (gelados, minis, cafés ...).

O calor e as subidas novas do percurso tiveram o seu impacto, e parece que foi a edição da prova com mais desistências de sempre...

Fiquei com a sensação de que era capaz de concluir sem grandes problemas uma prova de 100km mais "normal" (tipo, com trilhos e marcações, e sem selva amazónica ... ai as p&% das moscas !!!)
Portanto, se calhar, mais rapidamente aposto numa prova mais "conhecida" e menos variáveis, caso decida voltar a tentar os 100.

Com saúde haverão outras oportunidades, e é preciso treinar as subidas a pique !

(imagem roubada escandalosamente ao top maquina).

6 comentários:

  1. Clap, clap, clap.... muitos parabéns grande Paulo, pelo recorde de distância e pelo bom senso que demonstraste em ficar pelos 70km. Muito bom este teu texto que devia ser lido por muito boa gente. Um dia que chegue a minha vez de ter que tomar esta decisão, espero fazê-lo assim como tu ... ver o copo meio cheio e siga prá frente. Muito bom mesmo.
    Aquele abraço

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    1. Obrigado Carlos ! Naquele café no Alvoco da Serra, acredita que o copo ficou sempre bem cheio :D
      Quanto ao resto, são coisas que acontecem a qualquer um...
      Para mim foi um excelente dia nos trilhos, houve uma parte em que passei mal, mas o cérebro já bloqueou a memória, e felizmente resolveu-se bem, e mostrou que há companheirismo e que temos capacidade de manter a calma e de nos safar em situações de aperto.
      O facto de não ter terminado, só significa menos uma medalha cá em casa, mas as memórias e a noite e dia que passei ninguém o tira !
      "Faz de conta" que terminei a prova de 70k.

      Abraço !

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  2. Parabéns, Paulo! Também estive lá, "apenas" nos 70k, mas revi-me em várias coisas que escreveste. Também passei por uma aldeia onde os próprias habitantes tinham feito um abastecimento extra de livre vontade, e até fiquei emocionada com isso e o apoio que deram (não sei se será a mesma onde passaste).
    Tenho família em Unhais e sei que a vossa subida a sair de lá não era nada, nada, simples. Só lá estando mesmo, contado não há noção.
    Espero que, se for esse o teu desejo, possas voltar para o ano e terminar, aquela paisagem merece.
    E sim, nota mental para mim mesma também: treinar AINDA MAIS as subidas. :) Ou reforço muscular... talvez... :)
    Parabéns!

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    1. Obrigado :) Parabéns pela conquista dos 70k !
      Agora olhando para trás, se calhar era o que eu devia ter feito ... ir aos 70k...
      Mas prefiro arrepender-me do que tentei fazer, do que não fiz, e adorei a parte da noite !!!

      Segundo o GPS a aldeia era "Povoa velha", aquele chá de gengibre com mel estava divino !

      Ora bem, tendo família em Unhais, já tens todo o apoio e logística necessária para treinar as subidas !!
      Tens logo aquela para "aquecer", um abastecimento naquele café bestial em Alvoco, e depois segues para a Torre, serão uns "míseros" 15km's ou algo assim :P

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